AMARELINHA

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Retratos da violência em nossas mãos
Uma vez escrevi em uma prova sobre o papel do registro e da produção acadêmica progressista nas Ciências Criminais. O potencial de aproximar à população seus direitos e percepções críticas sobre o sistema de justiça criminal. Realmente acredito nisso. “Pensar alternativas ao sistema penal que possibilitem a emancipação humana” foi como eu encerrei a escrita.
Me questiono, entretanto, dos efeitos da mesma potência no registro fotográfico da violência: nossos “cliques” estão cada vez mais acessíveis, divulgados, compartilhados. Não há curadoria. Vemos e vivemos a violência estatal todos os dias nas ruas, nos olhares pela janela de casa. Ouvimos. Temos em mãos seus retratos: nos jornais televisivos, impressos, virtuais; em nossas redes sociais, sejam compartilhadas em postagens que celebrem o poder bélico estatal ou que insistam na preservação dos direitos humanos. Confesso que me questiono, inclusive, sobre o uso destas imagens nesta escrita - experimento construir uma tentativa de compreender e compartilhar elementos potentes e complexos do registro imagético da violência.
Com a violência exposta nas telas, o debate sobre a segurança pública é uma constante nas expressões jornalísticas. A fotografia, como modo de retrato instantâneo do fato noticiado, ganha destaque: as pessoas nestes registros são majoritariamente negras, o ambiente fotografado é periférico e residencial e, ainda assim, cenário de operações policiais fortemente armadas.
Vivo no Rio de Janeiro, falo do Rio de Janeiro e as imagens acima são do Rio de Janeiro. Rio que há pouco viveu a intervenção militar.
A facilitação da divulgação e consumo massivo de materiais fotográficos violentos dessensibiliza nosso olhar. Sontag já nos ensinava: o choque inicial, com o fluxo constante de imagens semelhantes, se perde. Deixamos de nos surpreender. O mal se torna banal e a angústia constante se dilui.
A violação massiva de Direitos Humanos é naturalizada a partir deste consumo amplo de imagens de violência de Estado. Deixamos de crer no exercício da vida humana com dignidade - ora, direito fundamental garantido constitucionalmente - a pessoas que vivem em
determinadas regiões: reforçamos a segregação urbana e o racismo ambiental, ao normalizar a narrativa racista e classista estruturante pela veiculação de fotos como as acima. São crianças sorrindo em face a quatro fuzis. E somos levados a considerar isso normal.
Longe de um discurso sobre culpa individual, a ampla disseminação de tais retratos constroem no imaginário coletivo uma normalidade de tais ações, naturalizando a presença do armamento ostensivo a ótica popular e tornando ordinária a agressividade na rotina policial.
O Rio de Janeiro registra o aumento de 161% de civis mortos por atividade policial - realidade dura, consequente de operações da Polícia Militar em combate ao tráfico de drogas. Morte, em ambiente residencial, num país em que não há pena de morte. Ainda que preso e julgado, o réu a ser encontrado pela polícia ainda possui seus direitos assegurados pela Carta Magna.
A narrativa de guerra às drogas sustenta na América Latina o aumento exponencial do encarceramento, a que chamamos de encarceramento em massa, e sustenta o ódio de classe e raça, sofisticado a partir do estereótipo do inimigo: a população consome ativamente o estigma da periculosidade, que molda conjuntamente o olhar do sistema judiciário. Esta dinâmica, no direito, é conhecida como direito penal do inimigo.
Pelo consumo destas imagens cotidianamente, reforça-se o imaginário de onde se vive o criminoso, sua classe social e como ele aparenta ser fisicamente. Não apenas, reforçamos a imagem de que todos que se adequem ao estereótipo tenham sua liberdade e dignidade flageladas pela mão do estado justificada pela perseguição ao “criminoso” e o combate ao crime. Nos desumanizamos.
Não deixemos de registrar, entretanto. É urgente a possibilidade de verificação da violência estatal por meio das imagens. O que fazer com a violência explícita do registro é a questão: qual o papel do fotógrafo frente a violência? Que curadoria é possível frente a violência? Que instrumentos de ativismo social são possíveis a partir do choque visual da violência? É urgente mudarmos. Rompermos a narrativa estrutural. Que as imagens que ainda doam, revoltem e provoquem mudança.